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POA – PESSOAS, OLHARES, AMORES

O alegretense Mario Quintana, ao entregar os originais de “Apontamentos de História Sobrenatural” (1976) a José Otávio Bertaso parou diante de uma das janelas do escritório que ficava no prédio da Editora Globo na Avenida Getúlio Vargas, onde também funcionavam a gráfica e a loja de mesmo nome, e permaneceu ali por alguns minutos, contemplando em silêncio a vista privilegiada de um bairro Menino Deus ainda sem tantos prédios a esconder o horizonte. A seguir, sentou-se à mesa do editor e escreveu, em cerca de vinte minutos, um poema que pediu para ser acrescentado ao livro que já estava no prelo.

No texto “O mapa”, Quintana trata Porto Alegre como um ser orgânico, e assumindo ele próprio já ter se integrado totalmente a esse ente (“É nem que fosse o meu corpo”), em um processo perfeito de simbiose, acusa

(…) uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei.

De certa forma, o poeta, que se mudou para a capital gaúcha em 1919, estava descrevendo um sentimento que, mais de 40 anos depois daquele texto, acompanharia a trajetória de quatro repórteres que o destino tratou de reunir na editoria de Porto Alegre do jornal Zero Hora e do site GZH – e que agora voltam a se encontrar neste livro.

Criada em fevereiro de 2017 para ampliar a ligação dos veículos do Grupo RBS com a capital dos gaúchos, a editoria tem se destacado por aliar ao fazer crítico do jornalismo tradicional um olhar afetivo que nasce justamente de um contemplar como o do poeta. São momentos assim que tiram o repórter da loucura que é trabalhar com um deadline apertado e o permitem escapar da mesmice que o cotidiano nos impõe às vezes.

Afinal, na maior parte do tempo, são os temas pesados e indigestos que tomam conta do noticiário. Eles chegam aos borbotões, e pelos mais diferentes canais. É aumento da passagem de ônibus, discussões sobre o reajuste do IPTU, congestionamentos que travam a cidade, alagamentos a inundar sonhos, incêndios que queimam casas e verba pública, abandono de animais, escândalos, eleições, disputas por terra, debates sobre a implementação de uma mina de carvão às margens do principal manancial de água da região… Há momentos em que a vida parece tomada pelo caos.

O repórter, contudo, é um especialista em ordenar tudo isso, tornando um conjunto de informações dispersas não só em algo compreensível, como também palatável. É um profissional que carrega no DNA essa característica, algo que o encaixa na definição de contemporâneo de Giorgio Agambem, que fala desse ser que “mantém fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro”, ao mesmo tempo em que “é preciso ter o dorso quebrado para virar-se e contemplar as próprias pegadas”. Contemporâneo, explica o filósofo italiano, é justamente “aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”.

O bom repórter, essa figura que tem um pé na rua, o olhar treinado e o dorso quebrado, faz exatamente isso. Mas não faz só isso. Stephen King, o mestre do terror, disse certa vez que “não pode haver horror sem um pouquinho de amor. Não pode haver escuridão sem luz. Senão você não dá nenhum contraste às pessoas, tudo se torna… inútil”. E, bem, há muita luz pelas ruas da capital, a despeito dos roubos de fios e de luminárias.

Nos últimos anos, os repórteres Marcelo Gonzatto (o único porto-alegrense), Bruna Vargas (São Leopoldo), Caue Fonseca (Caxias do Sul) e Jéssica Rebeca Weber (Nova Petrópolis) souberam aproveitar muito bem a oportunidade que tiveram de contemplar Porto Alegre. Observaram as trevas do nosso tempo, mas também encontraram as frestas pelas quais o sol passa. E nesse jogo de luz, nos presentearam com textos poderosos. Conseguiram extrair beleza de um campeonato de bocha, graça da história da falta de um telefone na Caverna do Ratão, humanizaram uma personagem que está na boca do povo, mas que poucos conhecem de fato, e nos deixaram apreensivos com o ex-lateral do Força e Luz que, aos 80 anos, caiu de um barco no Guaíba, à noite, e teve que aguardar quase uma hora, boiando, até o filho se dar conta e conseguir retornar para resgatá-lo.

Muitos dos materiais aqui presentes foram construídos com viés noticioso, mas possuem roupagem de crônica, o que os coloca como candidatos ao posto de documentos históricos. Mas este não é um livro de História, nem há aqui qualquer tratado antropológico. Também não serve para retratar uma época – nem sequer seguimos cronologicamente os acontecimentos.

É, sim, um livro de histórias, em que procuramos contar um pouco sobre a vida em Porto Alegre nos últimos anos. São casos e causos saborosos de uma cidade que ama a ambiguidade de suas polarizações.

Este, portanto, é um livro sobre pessoas, sobre olhares e sobre amores. Uma temática que escolhemos a partir do acrônimo POA, o apelido carinhoso de Porto Alegre, que celebra seu 250º aniversário neste ano. Foi a partir das três vertentes, que estão sempre se entrecruzando, que selecionamos as reportagens. E é preciso dizer: uma enormidade de textos ficou de fora. Na primeira seleção que fizemos, havia quase 400 páginas. Por isso, quando olho o sumário desta obra, como quem olha a anatomia de um corpo (É nem que fosse meu corpo), sinto uma dor infinita pelo que tivemos de cortar.

Três textos receberam um parágrafo final com uma atualização importante, pois os destinos do personagem, no caso de duas reportagens, e do lugar (também um personagem), no caso de outra, tiveram um desfecho definitivo que foi noticiado por GZH. Pode ser, porém, que muitas pessoas aqui retratadas já não estejam entre nós. Pode ser que muitos lugares já tenham fechado. Pode ser que muitas atividades já não sejam exercidas.

A ordem dos textos foi uma escolha aleatória. E se você quiser saber como ler o livro, deixamos uma dica de Virginia Woolf: “O único conselho, de fato, que uma pessoa pode dar a outra sobre o ato de ler é não seguir conselho algum, seguir seus próprios instintos, usar suas próprias razões, chegar a suas próprias conclusões”.

Portanto, leia como quiser, onde quiser, na ordem que desejar. Mas leia. Esperamos que nas páginas a seguir você encontre muita emoção e sentimento, afinal, os quatro repórteres deste livro são artistas da palavra e, como bem disse um dos personagens presentes na obra, “o barato é esse, mexer com o afeto das pessoas”. Boa leitura!

André Roca
Editor de Porto Alegre de GZH de janeiro de 2019 a maio de 2021.

Todo time de bocha já começa meio em extinção.

PASCOALINO FEROLETO, PERSONAGEM DA REPORTAGEM “DUELO NA CANCHA”

PS.: Todo editor que tem uma equipe como esta é um editor realizado. Infelizmente, toda editoria é uma editoria em extinção. Muito obrigado, Gonzatto, Bruna, Caue e Jéssica!

FOTO: Jefferson Botega / Agência RBS

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Uma publicação compartilhada por Eduardo André Viamonte ♾️ (@caradasunga)