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DIAS MÚLTIPLOS, NADA COMUNS

Em narrativas longas, espera-se do personagem que carrega o conflito principal uma transformação ao fim da história. E esse movimento, que sempre me faz pensar no rio de Heráclito, é parte do que aproxima a ficção da realidade, pois permite entendermos um pouco melhor o mundo que nos cerca. O livro de contos Dias múltiplos, nada comuns é portador dessa capacidade.

Muito do efeito se deve aos personagens criados por Helenice Trindade. Ela cava fundo no terreno das emoções e traz à superfície elementos que nos colocam como espectadores ativos desse espetáculo da comédia humana sem cair no melodrama banal.

A autora segue à risca aquilo que disse Erico Verissimo, lá em 1939, ao explicar em uma conferência o processo de criação do romance Saga. Segundo ele, “um escritor não deve tolher as suas criaturas” e nem “deve traçar rigidamente a psicologia de suas personagens, sob pena de torná-las sem vida”. Caro leitor, este livro está cheio de vida.

O plural, aliás, caberia bem: vidas. Porque temos não uma nem duas, mas várias portando o bóson da gênese literária, essa partícula que, trabalhada com afinco – e algum talento –, vê uma ideia se transformar em algo tão real que nos tornamos íntimos, próximos, quase a ponto de poder tocá-la.

Além disso, Helenice se apresenta ao público como uma escritora que sabe fazer muito bem cenas de sedução ou de sexo. Entre afetos e desamores, silêncios, reflexos e gemidos, ela consegue ser “sexy sem ser vulgar” – aqui, aproveito para contaminar esta orelha com um clichê, material escasso nas páginas a seguir. Dá trabalho, o risco é constante, mas a autora tem coragem e determinação, e toca direto na alma.

Prepare-se, portanto, para sofrer com uma mulher abandonada, dona de uma sensibilidade ímpar. Aprume-se e vire você também um cúmplice da excluída Beatriz. Feche as janelas, pois Abdo e Ana vão provocar um temporal – ele está vindo! Conheça o vendedor de maçãs que não imaginava vender também sonhos. Ria com a viúva de Idagildo. Chore com Sérgio.

Mas não tenha pressa para degustar essas e outras tantas histórias. Trate cada texto com o devido carinho. Dê tempo a eles. Saiba que muitos passaram por um longo processo de decantação antes de preencheram essas páginas para ganharem o mundo. Aliás, acho que a expressão é essa mesma. Mas quem ganha é o mundo. E muito. Boa leitura!

André Roca
Jornalista, professor e escritor

Porto Alegre, setembro de 2018.